quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Da visibilidade à Luta LésbiKa ou a metáfora da “tortilla[8]

por m a r i a n a p e s s a h
[9]

Eu dividi este trabalho em duas partes. A primeira é este texto. A segunda é o fotoblog – ou galeria de fotos on line - chamado Luta LésbiKa. O objetivo desse fotoblog é, embora de forma subjetiva, mostrar- visibilizar nossa Luta LésbiKa.

http://www.flickr.com/photos/83523012@N00


Com a chegada do mês de agosto parei para pensar sobre a questão da visibilidade lésbica. Como se sabe, no Brasil o dia 29 de agosto é o Dia Nacional e, ainda que pareça contraditório, essa história de visibilidade acaba me parecendo um pouco abstrata. O que afinal se quer mostrar?
Penso que a visibilidade tem que ser uma ferramenta para a luta, não um fim em si mesmo. O que me parece é que esta data visibiliza as diferentes posturas que existem dentro do movimento lésbico - algumas mais centradas na causa única, outras interagindo com outros movimentos sociais.


Vamos falar de v i s i b i l i d a d e


Se falamos estritamente de visibilizar, ou seja, de VER - mostrar no cotidiano, se percebe uma mudança importante. Pela rua podemos identificar lésbicas entre tantas heterossexuais. Inclusive me parece muito sensual quando vejo mulheres trocando carinhos no parque.
Também me alegra quando vejo famílias que já não se horrorizam, nem se incomodam por ter uma filha, irmã, neta ou avó lésbica.
É verdade, nas novas gerações já se vê mudanças. Recordo que nos primeiros anos de minha juventude nem sequer sabia se lésbica se escrevia com “b” ou “v”, e não seria justamente para minha mãe – que possuía uma excelente redação – a quem eu perguntaria
[10]. As gerações atuais, sobretudo a classe média, da maioria dos países ocidentais, já estabeleceram um diálogo mais aberto com suas mães e passam por muito menos traumas.


Apesar disso me pergunto: v i s i b i l i z a r é s u f i c i e n t e ? Este é o ponto onde almejamos chegar, ou aspiramos algo mais?

Se esta idéia é um pouco abstrata não corremos o risco de ficarmos sozinhas? Somente nós lésbicas devemos nos visibilizar?
Durante esses dias o correio fica abarrotado de mails anunciando eventos que se sucedem durante o mês de agosto. Entre os muitos que recebi, um em especial me chamou a atenção. Uma mulher heterossexual deixava bem explícito “recebi e estou enviando” leia-se nas entrelinhas eu não sou lésbica. A mim nunca me ocorreria, frente à legalização - despenalização do aborto explicitar se eu abortei ou não. Isso, simplesmente faz parte de minha luta e a ninguém importa o que se passa especificamente com meu corpo. Esse dado é um divisor de águas: nós e elas.
Esse fato me faz lembrar da pouca consciência social que existe. É suficiente ver mulheres abraçadas nas ruas, agitando bandeiras coloridas quando as próprias mulheres do movimento feminista ainda devem explicar que não são lésbicas? Até que ponto avançamos?


Até onde queremos chegar?

Aqui aparece uma das grandes divisões do movimento. Há aquelas que lutam simplesmente pela visibilidade, ou seja, por ser vista, por mostrar sua existência, o que não me parece um fato menor, mas simplesmente incompleto por falta de uma proposta mais radical e profunda.
O que entendo que deveria ser movimento social está sendo reduzido a um só movimento de bandeira. Movimento de uma causa única. Seguindo o exemplo da alopatia, onde se recorta o corpo em pedaços e cada especialista se ocupa de curar sua parte. A mesma coisa sucede em nosso corpo social. Cada grupo agita sua própria bandeira sem entrelaçar-se com outras. Esse isolamento retira a abrangência social do movimento, torna-o mais digerível aos olhos do sistema, deixando essa luta sem possibilidades revolucionárias e transformadoras.

Muitas lésbicas se definem a si próprias como gays, homossexuais femininas
[11], entendidas, e inclusive lésbicas, mas o fazem unicamente como referência a uma orientação sexual diferente da norma. Como diz a socióloga e aKtivista francesa Jules Falquet em seu recente trabalho[12]. : “…essa perspectiva não é suficiente se não estiver acompanhada por uma reflexão materialista[13]. Podemos ver, analisando o esforço feminista internacional autônomo de maior alcance que existe hoje[14]: a Marcha Mundial das Mulheres, estudada pela socióloga francesa Elsa Galerand (2006), que tem entre suas reivindicações o respeito à “preferência sexual". Galerand demonstra que esta demanda reflete uma verdadeira desmaterialização de nossas lutas, porque reduz a lesbianidade ao nível de uma simples “preferência”, o que acaba por invisibilizar o fato de que a sexualidade constitui um elemento central das relações sociais de sexo — neste caso, da dominação dos varões e da heterossexualidade”


A metáfora da t o r t i l l a

Na América Latina e no Caribe um dos nomes pejorativos que a sociedade homo - lesbofóbica inventou para chamar as lésbicas é “tortillera”. Uma de nossas estratégias é justamente retomar, resignificar cada nome, cada insulto com que nos “presenteiam” e dessa maneira deixarmos o opressor sem respostas.

Há dois anos atrás, na abertura do VI Encontro Lésbico Feminista de AMLAC, no México, durante o ato de abertura que se realizou em um teatro, a atriz e pensadora Jesusa Rodríguez tinha uma “tortilla” na mão e – com muito humor - nos perguntava às lesbianas aí presentes se sabíamos qual a origem desse nome. Nunca me havia posto a pensar nisso e a pergunta continuou dando voltas na minha cabeça.

Gostaria de aproveitar essa data para re-pensar a metáfora da “tortilla”. Como revolucionária e “tortillera” quero dar a volta na realidade, que o que está embaixo, passe para cima! Mas, pensando a partir de outra lógica, não vejo necessidade de que o que esteja encima deva descer.
Vendo desde outro ângulo, não somente como orientação ou preferência sexual, a lesbianidade é uma sexualidade que não pertence à norma, isso quer dizer que está fora do sistema heteronormativo. A partir dessa visão, é mais fácil desestabilizar o sistema. Porque querer integrar-se? Ao contrário, como propõe a feminista materialista Monique Witting, temos a frigideira preparada e a tampa da panela – como utilizava minha avó – para dar a volta na “tortilla”.

“A categoria sexo é uma categoria política que fundamenta a sociedade enquanto heterossexual. Dessa forma, não é uma questão de “ser” mas de relações (porque as “mulheres” e os “homens” são o resultado de relações). A categoria de sexo é a categoria que estabelece como “natural” a relação que está na base da sociedade (heterossexual) e através da qual, a metade da população – as mulheres – são “heterossexualizadas” (a fabricação de mulheres é semelhante à fabricação de eunucos, à criação de escravas - os e de animais) e submetidas a uma economia heterossexual. Isso porque a categoria de sexo é o produto da sociedade heterossexual que impõe às mulheres a obrigação absoluta da reprodução da “espécie”, ou seja, da reprodução da sociedade heterossexual.”
A obrigação de reprodução da “espécie” que é atribuída às mulheres é o sistema de exploração sobre o qual se funda a economia heterossexual”
[15].


Aqui M. W. começa a descascar as batatas para fazer a “tortilla” - explicando as categorias sociais de homens e mulheres - para logo chegar a sua frase muito conhecida que as lésbicas não são - somos mulheres. Por que? Desde o momento que saímos da lógica heterosexualizante, podemos pensar em outra sociedade, ver a partir do lado de fora e construir outros valores, economias, categorias sociais, etc. Ou seja, que a “tortilla” é para toda a humanidade, não somente para as lésbicas.
Por isso é tão importante entender nossa luta, nossa lesbianidade como uma ferramenta política e revolucionária, não somente uma luta pela visibilidade.



Visibilizar a l u t a


Pelo exposto aqui, não quero um dia de visibilidade para somente mostrar lésbicas abraçando-se e beijando-se e, muito menos, mulheres nuas[16].
Quero neste momento – espaço dar visibilidade a nossas Lutas, desejos, objetivos, vidas, paraísos, pensamentos. O que quero é dar visibilidade a nossa Luta Lésbika.

Por isso dividi meu trabalho em duas partes. A primeira é esse texto que acabaram de ler, e a segunda é a galeria de fotos Luta LésbiKa.

Convido agora a clicar em:
http://www.flickr.com/photos/83523012@N00/
Porque a Luta continua.



[8] Tortilla é uma comida que se prepara com ovos, uma das mais conhecidas se faz com batatas. Para que ela esteja bem cozida, deve ser feita primeiro de um lado e logo depois tem que ser virada.
Em AMLAC, as sapatas somos chamadas de tortilla - tortillera.

[9] mariana pessah é artista lésbica e ativista feminista, também artista feminista e ativista lésbica latino-americana e caribenha. Pertence ao espaço Mulheres Rebeldes e EM REBELDIA http://enrebeldia.blogspot.com/ radicaldesdelaraiz@yahoo.com.br / marianapessah@yahoo.com.br

[10] Essa confusão se explica na língua Argentina onde se confunde mais facilmente a pronúncia de b e v. (nota da tradutora).
[11] Tanto as palavras gay, como homossexual possuem no imaginário coletivo uma idéia de homem que gosta de homens. Nunca aparecem as mulheres por isso é tão importante apropriar-se da palavra lésbica que tem uma his - herstoria mujeril. Origina-se de Lesbos, uma ilha da Grécia antiga, onde 400 anos AC, existiu Safo, a primeira referência his - herstórica de uma mulher que tenha amado a outras mulheres. Com mais razão, se falamos de visibilidade, é necessário utilizar palavras que nos visibilizem.

[12] “La pareja, este doloroso problema” exposição apresentada no Quinto Colóquio Internacional de Estudos Lésbicos “Tudo sobre o amor”, organizado por Bagdam Espace Lesbien em Toulouse (França).

[13] Por materialista, entendo uma análise que parte da situação material, econômica, histórica, concreta e cotidiana das pessoas, ao invés de enfocar a reflexão sobre aspectos ideológicos, culturais, psicológicos ou emocionais. Também mais específicamente reivindico (entre muitos outros) os aportes téoricos do feminismo materialista “francês”, que desenvolveu o conceito chave da “apropriação individual e coletiva das mulheres” e a idéia que as mulheres somos una classe social definida por tal mecanismo de apropriação (e de nenhuma maneira um grupo biológico), em especial Christine Delphy, Nicole Claude Mathieu, Colette Guillaumin, Paola Tabet e Monique Wittig. Para maiores detalhes, ver Curiel e Falquet, 2005.

[14] Falo aqui de projetos políticos e organizativos nascidos do movimento feminista e não daqueles criados pelas instituições internacionais a partir das grandes conferências e demais atividades recuperadoras organizadas pela ONU. Sem dúvida cabe a pergunta de quão autônomos são os inumeráveis grupos que, apesar de não nascer diretamente da ONU, recebem financiamentos estatais, de igrejas ou de agências de cooperação. Agradeço a Yan María Castro por seu comentário a respeito, no marco da discussão eletrônica deste artigo.

[15] Monique Witting: Le pensée straight Éditions Balland, 2001, pag. 46.

[16] En una actitud que podría reforzar la visión masculinista que tiene el patriarcado de nuestros cuerpos, al igual que la publicidad, que también utiliza nuestras “partes” para vender sus productos. Digo solamente “partes”, porque rara vez he visto una publicidad cuyo valor sea la inteligencia de una mujer, con lo cual, faltando la cabeza, quedan sus “partes”.

Nenhum comentário: