quarta-feira, 7 de novembro de 2007

RELACIONAMENTOS ABERTOS

Do pessoal ao político - revolução cotidiana e libertária
Por Clarisse Chiappini Castilhos[1]

Estas são livres reflexões sobre a dimensão política de vivências pessoais. Pretendo aqui contribuir para levar adiante aquela discussão tão essencial – e tão difícil: o aprofundamento do significado político / pessoal dos relacionamentos abertos[2]. Mais ainda, conversar sobre a vivência cotidiana dessa luta.
Essa proposta de discussão tem base em longas conversas com MarianaPessah, bem como outras amigas e companheiras.


um pouquinho de his-tória e hers-tória ...

Gostaria de me apresentar como uma pós-hippie, pós-68, ainda-feminista, ainda-esquerdista, marxista com pitadas de anarkismo, tentando encontrar um espaço nesse mundo estupidamente dominado pelo estúpido pensamento pós-moderno e neo-liberal. Por isso não abandono o debate tão vivo nos anos 70 sobre “monogamia” - um tema central nas lutas libertárias e intimamente relacionado à idéia de “relações abertas”.

O próprio marxismo nos mostra que a família monogâmica se formou para garantir a transmissão da herança gerada pela acumulação de excedente (Engels). Esse pensamento nos leva também a concluir que o núcleo familiar monogâmico patriarcal, definiu rigorosamente o papel exercido pelo homem e pela mulher, papéis esses que sempre colocaram o homem na esfera do poder.

No capitalismo, essa estrutura caiu como uma luva, favorecendo nitidamente a reprodução do capital através da ampliação da mais valia. De que forma? Dentre outras sutilezas, porque a ação das mulheres nesse micro sistema contribuiu, e contribui, para a redução do custo de reprodução da mão-de-obra e assim para o pagamento de menores salários à classe operária. A “fada do lar” zela pela alimentação, segurança, educação e bem-estar da família. Isso tudo sem cobrar nada. Se agregarmos o fato de que hoje a maioria das mulheres está engajada no mercado de trabalho, exercendo duplas ou triplas jornadas, e ainda sendo pior remunerada do que os homens, podemos formar um panorama mais completo do papel das mulheres no sistema. Essa estrutura de funcionamento tem uma base material: transmissão da herança e redução do custo de reprodução da força de trabalho.

No entanto, o que hoje mais assegura a manutenção da estrutura familiar monogâmica é sua função ideológica, o seu simbolismo de felicidade, de única forma possível de bem-estar. Essa ideologia – a da família monogâmica feliz - é tão poderosa quanto outras representações sociais como a autoridade patriarcal, como a proteção materna, e de seus macro-equivalentes como o Estado e as instituições. Essas representações são o instrumento mais eficaz para impedir o fim de um sistema econômico que somente se reproduz através da destruição material. É de ressaltar a importância que tem para o capitalismo, em sua fase atual, continuar com a submissão das mulheres, ainda que disfarçada atrás de formas mais sofisticadas.

“O aspecto mais importante da família na manutenção do domínio do capital sobre a sociedade é a perpetuação- e a internalização- do sistema de valores profundamente iníquo, que não permite contestar a autoridade do capital, que determina o que pode ser considerado um rumo aceitável de ação dos indivíduos que querem ser aceitos como normais, em vez de desqualificados por “comportamento não conformista” (Mészáros, 2002,p. 271)

E como se passou no socialismo real? A vanguarda da revolução russa, coerente com a crítica marxista da família, organizou comunas para substituir o núcleo familiar tradicional. Nessa fase temos a pioneira Alexandra Kolontai, com todos os limites próprios a uma pensadora imersa num processo revolucionário. Infelizmente, essa revolução foi logo retomada pelo poder patriarcal e por sua conseqüente rigidez moral. O moralismo capitalista foi transformado em moralismo socialista, cheio de regras e de “patrulhas ideológicas”. Tudo o que era estranho, como o amor entre pessoas do mesmo sexo, era considerado “desvio burguês”. Essa experiência durou pouco e, 90 anos depois, @s russ@s continuam se agregando em famílias monogâmicas, tradicionais e repressoras. Esse exemplo mostra a força da ideologia que mantém as bases de um sistema econômico decadente, mesmo que em forma de farsa, como nos antigos países socialistas. Com isso prolonga sua sobrevida e a nossa agonia.

Quem viveu a luta dos anos 60’/70’ tinha como meta a transformação plena, da economia, da cultura e dos valores. A revolução econômica ligada à revolução sexual. A crítica se estendia do chamado marxismo vulgar (economicismo) à psicologia freudiana (civilização é repressão). A criação de uma nova sociedade não passaria apenas pela coletivização dos meios de produção era necessário criar uma nova ideologia, um novo cotidiano.


a revolução cotidiana e a lesbianidade

Sabemos muito bem para onde o socialismo real / patriarcal, nos conduziu. Conhecemos perfeitamente os efeitos pessoais e sociais do dogmatismo moral da família tradicional. A história da família é a história de repressão da criatividade, da sexualidade e do prazer.

A família nuclear monogâmica servia - e ainda serve - para controlar a libido humana (em particular da mulher); para reprimir seu prazer - principal fonte de imaginação e de criatividade-; para fabricar uma infelicidade que gera silêncio e submissão. Uma submissão necessária à reprodução do capital e do mundo de dominância masculino. O riso, a alegria e a irreverência são obras do demônio e devem ser eliminadas e controladas pela culpa.
Como dizia Jorge, o frei cego do Nome da Rosa, a propósito do segundo livro da poética de Aristóteles[3]: “(...) O riso libera o aldeão do medo do diabo, porque na festa dos tolos também o diabo aparece pobre e tolo portanto controlável. Mas este livro (o segundo livro da Poética) poderia ensinar que libertar-se do medo do diabo é sabedoria. (...) a lei é imposta pelo medo, cujo verdadeiro nome é temor a Deus. E deste livro poderia partir a fagulha luciferina que atearia no mundo inteiro um novo incêndio (...). (Eco, 2003, p.455) A civilização judaico – cristã - muçulmana é a civilização da repressão e da culpa. Esta é a verdadeira história da humanidade.

a revolução dentro de casa

Até aqui apresentei livres reflexões que podem conter algumas imprecisões, mas são o pano de fundo do debate que proponho retomar em profundidade: as relações abertas na luta cotidiana; o desafio que enfrentamos no dia - dia desde uma perspectiva lésbica- feminista- autônoma e revolucionária.

Vamos partir de algumas constatações:
-Primeira: a pedra fundamental para a manutenção da família hetero monogâmica é a “fidelidade” da mulher.
-Segunda: nas “famílias” lésbicas, a prática não é muito diferente.

É da segunda que quero começar a pensar. No dia-a-dia os relacionamentos lésbicos não se diferenciam radicalmente dos relacionamentos heteros! Mesmo entre aquelas que consideram que ser lésbica é também, e antes de tudo, um ato político. De modo geral, dentro das relações amorosas lésbicas, a materialização dos desejos da outra, a possibilidade de viver novas relações sexo-afetivas - e mesmo apenas afetivas- fora dessa união, são vistas com muita desconfiança e com muito medo. Na maior parte das vezes resulta ou em finalização da união ou na repressão desses impulsos.

De fato, conviver com a perspectiva de mudar essa situação no cotidiano - não somente nas teorias e debates - é uma situação difícil e dolorosa. É como andar no fio da navalha, no limite entre a realização plena para uma e a frustração para a outra. No entanto essa pode ser uma construção solidária muito criativa, prazerosa e, sobretudo, o resgate da nossa alegria humana. Essa é, com certeza, uma das bases da revolução cotidiana e permanente.

A experiência pessoal de quem viveu maio de 68 e daquelas que continuaram resistindo, foi uma sucessão de tentativas de realizar o desejo de ser livre no corpo e nos pensamentos. Uma luta cotidiana para contrapor-se à acomodação e à sedução de inserção bem comportada proposta pelo capitalismo.

Mais difícil torna-se viver esse sonho no cotidiano de uma relação amorosa, dividindo o dia-a-dia com uma companheira, onde as duas se amem, se desejem e possam criar juntas.
Viver essa situação só pode acontecer dentro de uma base de muita sinceridade que contém a renovação compartilhada dessa revolução cotidiana e permanente. Somente a partir de conversas constantes e solidárias foi possível progredir sobre esse tema, apesar de sua complexidade. Num contexto de liberdade torna-se possível a convivência com novos amores e permite as pessoas envolvidas nessa situação tomar uma via (ou uma transvia) mais verdadeira e mais prazerosa.

As dificuldades são grandes. Do lado de quem está consciente que a sua parceira está envolvida/encantada/apaixonada por outra mulher ocorrem muitas crises de insegurança (de inspiração hetero - patriarcal, é bem verdade, mas nem por isso menos dolorosas). Uma vez que se consegue conviver com esses sentimentos, a superação da sensação de posse (que também não é nada simples) leva a uma libertação dos próprios sentimentos.

O essencial para conviver com essa nova situação é falar tudo dentro do relacionamento. Aquele papo de “só contar quando for algo mais sério” não funciona. É um embuste. Em primeiro lugar, porque está abalando a capacidade de percepção e de conhecimento de uma pela outra:
uma -eu sinto que ela está com outra relação, ou a fim de outra mulher, mas é paranóia... Se eu falar, ela vai se sentir agredida.
outra – Tem sentido falar se talvez termine amanhã?

É possível antecipar ou afirmar os rumos de uma relação aberta ou fechada? Penso que o primeiro passo é que todas as mulheres envolvidas têm que conhecer a verdade. Tudo precisa ficar explicito, mesmo que seja “eu não sei o que vai acontecer a partir de agora...”.

Compreendendo e vivendo esse processo, junto com uma companheira engajada nessa mesma busca, pode-se sentir um profundo sentimento de libertação. Numa situação como essa o ciúme e a posse perdem o sentido (mesmo que sigam existindo). Permanece o medo de “perder” que também é uma possibilidade numa relação monogâmica ou fechada. A possibilidade de esconder os sentimentos que possa (eu também) ter por uma terceira pessoa, também perde o sentido.

Reitero que é necessário muito cuidado com a(s) pessoa(s) amada(s). Vale a pena ser exposta a situações diárias e freqüentes de divisão de privacidade? É essencial preservar a intimidade e a especificidade das relações. Penso que esse convívio constante expõe a pessoa que está tendo outras relações a um stress de tentar “ajustar” as coisas, e as outras duas a muitas oscilações por imaginar coisas que não são ditas, sentimentos que estão sendo reprimidos. Em suma, penso que viver relações paralelas não pode cortar o fluxo de energia entre as pessoas que dela participam.

Como venho defendendo desde o início, a forma de trilhar o caminho do desafio é muita subjetiva. Mas, penso que cada uma deveria encontrar a forma de inserir suas próprias particularidades e individualidades nesse processo. Uma das minhas, é manter minha paz que também é um elemento de criação.


Até onde levaram nossos diálogos...

A prática, desta vez, me levou a acreditar que não tem o menor sentido perder sentimentos tão profundos e tão criativos - e raros - que podem unir duas mulheres, nem esse desejo que sentimos quando estamos bem. Também não tem o menor sentido que cada uma impeça a realização dos mais diversos impulsos criativos da outra. São relações diferentes, com pessoas diferentes. É como se retirássemos um véu que nos separa de nossa essência e que finalmente passássemos a nos ver face a face. Com todas nossas dificuldades e desejos. Enfim mais humanas, mais revolucionárias, com mais força para transformar esse mundo patriarcal, classista e racista. Isso me enche de amor por minha companheira e me dá vontade de ser inteira e plena. Afinal, como dizem @s existencialistas, viver é carência de ser.

Se a revolução social parece uma meta tão distante, ela pode ocorrer dentro de casa, desde que sua dimensão social não se extravie. Na realidade é somente na dialética individual / social que pode se construir um processo revolucionário que seja permanente e representativo dos conflitos que fundamentam todos os movimentos sociais. É a revolução do prazer, da criação e da mais profunda sinceridade.

Com tudo isso, quero deixar expresso que não pretendo escrever nenhum manual sobre relações abertas. Essa é uma experiência subjetiva (mesmo que política) que não tem regras, assim como a sociedade que nós queremos criar e viver desde agora. É parte de nossa revolução cotidiana e libertária.



Referências:

Engels, F. (s.d.) El origen de la família, la propiedad privada y el Estado. Ed. Progresso, Moscú.
Mészáros, I. (2002) Para além do capital. Ed. Boitempo/ Ed. UNICAMP, São Paulo.
Eco, U. (2003) O Nome da Rosa. Ed. O Globo, Rio de Janeiro/ Folha de São Paulo, São Paulo.

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